Opinião

Crônica desde as águas violentas

Por Paulo Rosa

Médico do SUS, Hospital Espírita, Caps Porto e Telemedicina PM 

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Corridos do Laranjal pelas águas de maio, instalamo-nos no Sítio Amoreza, nos cerros do Morro Redondo. Lugar aprazível, gente acolhedora, o que de melhor encontramos para refletir sobre estes tempos de tragédia gaúcha. Fisicamente protegidos, a única vulnerabilidade que permanece é a da alma, sem proteção para o que se vê e o que se ouve. Momentos críticos nos avassalam. Somos mais vulneráveis ante as agruras que a realidade externa se nos apronta do que para nossos conflitos interiores, por mais complicados que sejam. 

Assim, neófitos ante catástrofes climáticas, há que estarmo-nos alertas face o potencial traumático dos dramas diários. E também indispensável termos presente o peso emocional para as equipes de saúde que operam nessas circunstâncias. Com frequência, vê-se que os grupos de atendentes ficam expostos à sobrecarga de trabalho que o dia a dia exige, sem que haja um olhar suficientemente atento de proteção ante a tarefa. Nada raras, no momento, situações de burnout, de esgotamento emocional, a que se expõem as equipes.

Desde essa perspectiva temos buscado, em variados autores de distintas áreas, um suporte, um alento para esses grupos sob pressão e para nós próprios. Em A água violenta, último e mais denso capítulo de A água e os Sonhos, Martins Fontes, 1989, de Gaston Bachelard, filósofo, químico e poeta francês, ele anuncia, pág.166 ... “a provocação (itálicos do autor) é uma noção indispensável para compreender o papel ativo de nosso conhecimento do mundo... não se conhece imediatamente o mundo num conhecimento plácido, passivo, quieto. 

Todos os devaneios construtivos... norteiam-se na esperança de uma adversidade superada, na visão de um adversário vencido... uma vitória orgulhosa conquistada sobre um elemento adverso... os reflexos que o homem prepara... constituem uma resposta a um insulto, e não uma resposta a uma sensação... as próprias coisas nos questionam... em sua experiência audaciosa, o homem brutaliza o real”.

Os fragmentos do lúcido Bachelard, 1884-1962, dão ideia do impacto humano no ato de conhecer o real, visto este como portador de uma violência a ser vencida, sendo essa a forma como o homem ‘brutaliza o real’. O conhecimento da realidade implica em um componente de violência de parte do pesquisador, visto que ao real propriamente dito não temos acesso, sendo que toda formulação sobre a realidade contém um algo próprio do método do investigador, o que é em si uma violência. Dito de outra forma, a presença do homem modifica, ou seja, violenta o objeto a ser investigado, eliminando a possibilidade de um conhecimento ‘neutro’. O que sabemos, o acesso que criamos ao real, está modificado por nós, ainda que não o queiramos.

O texto vai para Pablo Bobbio, psicanalista, artista plástico e escritor argentino, que hoje vive em Houston, EUA, como reconhecimento por aproximar-me da arte como ato revolucionário.

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